terça-feira, 27 de abril de 2010

Devaneios de um velório pra lá de anormal

VIÚVA

As pessoas me olham e me rodeiam. Querem desejar sentimentos, mas não aceito. Afinal, sentimento nenhum existiu entre mim e ele. Tudo foi apenas uma vida de desilusões e sem alicerce. Um amor desnutrido e pouco famigerado. Até que tentei amá-lo, não posso mentir. Mas não teve jeito. O que me atraía nele era apenas o volume da conta bancária. Uma vida de luxo. Tive. Mas do que adiantou? Estou velha, na tenra idade e agora ninguém vai me querer.

Meu sonho sempre foi de encontrar um grande amor, quem sabe um príncipe encantado. No entanto, acabei me casando com o pai do meu tão sonhado príncipe. Trinta anos mais velho. No começo nem levei isso em conta. Mas deveria. A nossa relação na esfera social era ótima. Já a dois, sequer tinha excitação. Fazia apenas a minha parte na cama e logo dormia.

Agora, depois de muitas compras, viagens e futilidades, estou aqui ao pé desse caixão. Não me veem lágrimas para derramar. Não sei o que fazer. Estou rica e sozinha e mal amada como sempre. Mas não perco tempo. Ele pensa que não o vi, mas atentei-me aos olhares do pai da minha melhor amiga. Tudo bem que é desprovido de formosura, mas tem lindas mansões na Europa. Ah, que vergonha. Será que devo retribuir os olhares? Vou esperar pelo menos fechar o caixão. Não quero que meu marido leve uma má impressão de mim.


VELA

Passam das 20h e somente quatro pessoas chegaram. Está frio lá fora e para ajudar o aquecedor parou de funcionar. Parece que a noite vai ser tranqüila por aqui a não ser pela última família que aos poucos começa a chegar. Estão animados e com roupas coloridas. A que parece ser a filha mais velha é a mais coerente. Está adequadamente trajada e chora ao lado do caixão. Por outro lado, a suposta viúva, vaidosa e com poucos panos sobre o corpo, esnoba a situação.

Trabalho aqui há tanto tempo que até perdi as contas. Mas com toda certeza, nunca quiseram me derreter tão rápido como nesse velório. A todo o momento eles me olham, como se eu fosse a culpada pela demora do encontro familiar não acabar. O ponteiro do relógio, que anda a passos curtos e bem cadenciados já pesa sobre mim como uma bola cheia de areia.

Ufa! Estou indo embora, mas acho que essa confusão vai continuar sem mim. Coitada da próxima colega de trabalho que chegar. O turno dessa noite não vai ser fácil. O clima tá pesado aqui e com certeza deve piorar.

DEFUNTO

Não queria partir. Gostava da minha vida e acho que ela gostava de mim também. Posso dizer que, apesar de tudo, era feliz. Era rico, tinha uma mulher linda, muitos amigos e uma ótima posição social. Antes de partir, porém, não consegui cumprir uma meta em minha vida: ser pai. Adoro crianças e sempre sonhei em ter uma para alegrar a minha casa. Pena que a minha mulher era estéril ou fingia ser. Falo isso porque sempre desconfiei que ela não quisesse compartilhar comigo essa felicidade. Não sei o exato motivo, mas sempre a respeitei.

E agora, será que terei outra vida e nela a oportunidade de ter filhos ainda? Perguntas que ninguém me respondeu até o momento. A única coisa que sei e posso ver são essas pessoas ao meu lado. A visão está um pouco ofuscante pelo véu que cobre meu rosto. Estou sentindo falta de algumas pessoas. Onde estão meus amigos? Nem a minha esposa chegou.

Passaram duas horas e nada dela chegar. Estou preocupado, mas não posso mais esperar. Tenho que ir. Sei que ela virá e ficará comigo até o final. Confio nela e ela não vai me decepcionar. Adeus minha querida!

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